O público e a privada: O prazer pessoal da exposição pública

07/09/2014 19:28

Observações interessantes têm sido feitas a respeito das semelhanças existentes entre os programas televisivos do tipo "reality show", como "No Limite" (versão brasileira do "Survivor" norte-americano), "Casa dos Artistas" e "Big Brother Brasil" (versões brasileiras do "Big Brother" holandês), e dos blogs e sites pessoais na internet.

Tais programas têm apresentado audiência acima da média, não só no Brasil como nos outros países em que também foram apresentados. E o que move a curiosidade do público é justamente a exposição pública de pessoas, anônimas ou não, em situações que buscam simular o cotidiano comum. Sempre sob as luzes oniscientes da mídia.

 

O público

Estamos vivenciando, nesta virada de milênio, uma época midiática de exposição pública de peculiaridades pessoais. Quanto mais pessoal, subjetiva e anônima for a exposição, mais espetaculosa (e especulável), mais suscetível de se transformar em atração coletiva.

Em contrapartida, graças às novas tecnologias da comunicação, a interferência do público é cada vez mais possível e efetiva. E esta participação direta do público tem transformado muito os conteúdos de programação da mídia em geral.

Hoje, cada um de nós não manipula mais um punhado de "verdades" absolutas, fornecidas por fontes produtoras de informação de autoridade supostamente inquestionável. Lidamos, ao contrário, com uma gama ultradiversificada de "verdades" - opiniões singelas transformadas, pela definição de gente comum e não-especializada, em fatos, que são cada vez menos absolutos e mais questionáveis.

Podemos dizer com segurança que o cidadão comum, este ente antes utópico e agora consagrado, tornou-se ele mesmo uma fonte produtora (e reprodutora) de verdades, e uma fonte poderosa. Pois o grau de autoridade de determinada informação encontra-se cada vez mais vinculado às potencialidades autorais, subjetivas e individuais, desvinculando-se progressivamente das fontes convencionais de grandes instituições sociais como o governo, por exemplo.

 

A privada

O que importa e faz sucesso, hoje, é o indivíduo. É a opinião sincera do homem comum tomado de surpresa por um microfone na rua, da dona-de-casa abordada em situação rotineira de consumo, do jovem estudante, da criança. O que chama a nossa intenção é o site pessoal de pessoas comuns divulgando relatos de experiências triviais ou nem tanto, no grande e heterogêneo ambiente social que é a internet. Ou então ouvir de jovens empresários da nova economia como eles conseguiram transformar em muitos dólares idéias geradas a partir de necessidades e aspirações de adolescentes - idéias discutidas no chão de um quarto ou na garagem nos fundos de uma casa.

Várias vezes, dá-se importância maior à voz de uma criança ou de um jovem estudante do que a de um adulto, já inserido no mercado de trabalho e com responsabilidades sociais complexas. Parece que as verdades estabelecidas pelos grandes meios de comunicação já não mais satisfazem, não são mais plausíveis ou viáveis. O mundo globalizado, que intercambia informações múltiplas na velocidade da luz, exige e precisa cada vez mais de respostas diversificadas aos velhos problemas, de verdades várias que possam ser debatidas e analisadas à exaustão, sob diferentes ângulos, como num micróscópio coordenado por cirurgiões.

Deste modo, nada mais natural que o sucesso dos "reality shows": eles são a espetacularização da vida comum, amplificam os fragmentos da nossa vida privada. E as lentes de aumento da mídia, ao ampliarem nossos fragmentos cotidianos, misturam os limites tênues entre privado e público, expõem nossa vida privada à luz do público, tornando o comum em coisa incomum. Pois, na verdade, o incomum nada mais é do aquilo que não conhecemos ou não estamos habituados a ver.

 

O prazer

Movimentos de exposição pública, tais como os programas televisivos brasileiros "Você Decide", "Big Brother", "Casa dos Artistas" ou "No Limite", ao mesmo tempo que lembram performances artísticas e improvisos teatrais coordenados por um roteiro, também nos remetem à fascinação que todos temos em querer conhecer de perto os prazeres e tragédias da vida alheia.

Tal fascinação pode ser dividida em dois tipos: o prazer de ver sem ser observado e o prazer de opinar aberta e publicamente sobre a vida de alguém. O prazer de ver a intimidade alheia, com suas dores e enganos, alegrias e pequenos encantamentos, desperta fortemente nosso voyeurismo latente e universal. Já o prazer em opinar sobre a vida dos outros ocorre por causa de vários fatores sociais, sendo talvez o principal deles o acesso cada vez mais fácil que as pessoas têm aos meios produtores de informação, através das tecnologias de comunicação.

Todos nós, não importam as diferenças cronológicas ou sociais, temos prazer em interferir e opinar.  É agradável  e até mesmo lúdico pôr o dedo na notícia, fazer sugestões ou críticas a empresas, marcar com nossa digital o que vemos e ouvimos. No fundo, sabemos que nossa opinião vale ouro e, quando e como podemos, usamos deste expediente. Em certos casos, tais interferências diretas proporcionam alívio psicológico e até mesmo prestígio e status social.

Observar a intimidade alheia também nos proporciona grande sensação de poder: não é a nossa vida privada que está ali, em público, exposta a riscos, difamações, críticas ou improvisações. Salvos em nosso esconderijo, ainda podemos ver como o outro reage e se comporta em condições pelas quais também passamos.

Ao olharmos pela buraco da fechadura alheia, identificamos no objeto observado a porta que nos conduz aos nossos próprios anseios, terrores e prazeres. O que nos dá prazer faz parte de nós, e o que nos dá medo também. Da mesma forma como tudo aquilo cuja existência recusamos admitir.

É o objeto observado que nos dá a dimensão da normalidade, que nos permite avaliar até que ponto somos "normais" ou não. Se nos identificamos com o outro, encontramos um parceiro virtual. Se nos projetamos nele, na sua coragem ou fraqueza, encontramos um álibi emocional.

Tais processos de identificação e projeção já foram exaustivamente definidos pelos psicanalistas, e encontram em S. Freud fortes respaldos. O próprio prazer na exposição pública está relacionado ao que Freud chamou de Fase Anal ou Uro-Genital, fase do crescimento psicológico em que a criança aprende a lidar com suas fezes e excrementos.

A forma como lidamos com nossos excrementos demonstra em que ponto ainda estamos fixados na Fase Anal, definindo nossas relações com o poder (controlar as fezes) e o prazer (de aprender a soltar). Relaciona-se também com esta fase tudo o que tem a ver com o uso da força bruta, crueldade, tortura, a possibilidade do prazer pela dor e a obsessão (ou aversão) pelos temas escatológicos de uma forma geral.

Em termos históricos, após várias décadas experimentando formas sociais de ditadura as mais diversas, de repressão emocional e ideológica em vários níveis, parece fazer sentido o mundo atual estar com olhos tão fixos em sexo, violência e escatologias as mais diversas. Quando todos esses temas surgem misturados, então o sucesso é garantido. Esta é justamente a fórmula mágica dos "reality shows" campeões de audiência.

 

A exposição pública

Toda essa exposição midiática de pessoas comuns em situações comuns parece ser uma espécie de reação social às mais de três décadas passadas, em que todos estivemos coletivamente expostos à guerra fria de informações e pseudo-verdades imposta pela mídia em geral, não só no Brasil como em nível transnacional.

Por muito tempo estivemos, mercadologicamente falando, à mercê da força autoritária (autoritária porque muitas vezes singular) e imponente da indústria de comunicação de massa. Grandes grupos de comunicação para TV, cinema e rádio, além de grandes empresas do ramo editorial, reinaram quase absolutos por anos a fio. Criaram-se, assim, verdadeiros feudos produtores de informação, que praticavam um tipo de comunicação de mão única, homogênea, compacta e uniforme.

Essa comunicação feita por poucos e para muitos levava a maioria das pessoas a acreditar que o prazer estético e a informação só poderiam provir de poucas ou de uma única fonte, às vezes. Afinal,  como diria o filósofo Vilem Flusser, o incomparável é incompreensível. E, sem termos outros meios de informação para comparar, não tínhamos muito como questionar e analisar adequadamente o que recebíamos.

Hoje, a realidade é totalmente outra. É claro que a comunicação de massa não se extingüiu, até porque ela é necessária para comunicações genéricas de grande porte. Mas os critérios e formas de difusão de informação da grande mídia mudaram, com toda a certeza. Por uma simples questão de sobrevivência e adaptação social, de natureza darwinista (ou às vezes oportunista), a grande mídia garante-se através da estratégia do "se você não pode vencê-los, junte-se a eles".

Desta forma, a comunicação atual vem se desenvolvendo ao estilo "tailor-made": feita sob medida, de forma não-pasteurizada, segundo critérios cada vez mais personalizados de avaliação.

Não à toa, o que está em franca ascenção e desenvolvimento é a chamada comunicação de um para um: marketing direto, comércio sem intermediários (B2C/business-to-consumer), varejo ultra-segmentado, produtos de grife pessoal, serviços personalizados. Tudo sob demanda e sob medida.

No campo da informação e do entretenimento, podemos observar o crescimento das programações televisivas "on demand", os canais "pay-per-view" das TVs por assinatura, a multiplicação dos canais de TV a cabo e satélite, o acesso às redes telemáticas cada vez mais facilitado, livros e serviços de auto-ajuda, informações exclusivas para assinantes ou associados, serviços wap em banda larga, homepages pessoais e blogs na internet, entre outros.

Todos os dias, nossos olhos e ouvidos são treinados pela mídia para perceber o que é detalhe, destacando o que é diferente e incomum (ainda que esses detalhes sejam, na verdade, coisas comuns). Novelas, filmes, noticiários, anúncios publicitários e "reality shows" vêm treinando continuamente nossos sentidos para uma percepção social que apreende mais as diferenças e particularidades e menos os pontos comuns.

Pela Psicologia da Gestalt, podemos dizer que o nosso foco de atenção encontra-se atualmente nos detalhes sociais e no indivíduo. E o que está fora do foco de nossa consciência servindo de fundo, sendo absorvido de forma inconsciente e subliminar, são as grandes coletividades, as generalizações padronizadas e uniformes, as grandes instituições sociais.

A mídia, ao enfatizar os detalhes da nossa imensa e colorida colcha de retalhos social, vêm estimulando o pensar por detalhes, ajudando a desenvolver um raciocínio baseado em fragmentos coloridos e diferentes de informação. Ao focarmos nossa atenção consciente em detalhes, acabamos exercitando, ainda que caoticamente, uma opinião a respeito dos fatos cada vez menos generalizante e viciada, e mais particularizada e subjetiva.

Naturalmente, esta forma de percepção fractal do mundo apresenta seus prós e contras. A prática de enfatizar a visão das diferenças, em contraponto às generalizações irreais, pode vir a estimular a compreensão pelos diferentes (marginalizados, excluídos sociais), esclarecendo elementos ou situações sociais antes nebulosos ou ignorados, quando se costumava observar a sociedade a partir das médias estatísticas.

O enfoque nos detalhes, por outro lado, pode desestimular a prática da visão global dos fatos, promovendo dispersão e caoticidade social. Tal dispersão pode se refletir, por exemplo, em um desinteresse, por recusa ou desconhecimento prático, de tudo o que se refira às macro-estruturas sociais do poder.

Assim sendo, cabe aos grupos de mídia e aos comunicadores de um modo geral a função de não apenas produzir conteúdos de informação fractalizados e sob medida que atendam às expectativas desse público, mas principalmente de prestar o máximo possível de atenção consciente a esse fenômeno de fractalização das percepções do indivíduo.

Vale lembrar que este indivíduo não é apenas um consumidor, mas também uma pessoa originária de um núcleo familiar, integrada a pequenas comunidades, que se relaciona com outros indivíduos de mesma percepção que ele e que atua na sociedade como um cidadão, com todos os direitos e deveres a ele reservados.

O momento histórico pelo qual atravessamos, portanto, pede equilíbrio e adaptação de ambas as partes - de um lado, as grandes entidades constituídas, e do outro o indivíduo. Desta forma, apenas criticar negativamente os "reality shows" e a ascenção dos temas de âmbito privado aos espaços de domínio público é não reconhecê-los como respostas socializadas frente às décadas de intensa massificação contínua do indivíduo.

Tentar compreendê-los, ao contrário, significa considerá-los como ícones dos novos tempos que surgem, reconhecendo o fato histórico de estarmos vivenciando uma realidade social já fractalizada, em vários aspectos. Sociedade esta que, para ser melhor compreendida, necessita de uma abordagem fractoscópica - que possibilite o exercício criativo da observação e percepção do todo a partir da visão analítica de suas partes fractais componentes.

 

[© Rosy Feros, 2002]

 

 

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