Hábito de leitura e gosto por livros

29/08/2014 22:56

Nem sempre o hábito de ler e o gosto por livros caminham juntos.  Assim sendo, precisamos distingüir o hábito da leitura do hábito de consumir livros.  A leitura é um ato do intelecto e, se bem desenvolvida, pode tornar-se uma fruição estética e espiritual.

 

Recentemente, saiu uma pesquisa falando mais aprofundadamente sobre os hábitos de leitura do brasileiro. Os resultados da pesquisa, entretanto, não surpreenderam e evidenciaram o que muitos já sabiam. Faltam tempo, dinheiro e interesse para ler, fatores que muito prejudicam a formação do hábito de leitura no Brasil. Entre os jovens, há muito pouca disposição em ir às livrarias e consumir livros, e a média de livros lidos mensalmente entre leitores jovens e adultos é bem pequena, se comparada à de outros países.

A estes dados, que soam alarmantes para muitos, somem-se todas as decantadas pesquisas, previsões, sondagens e especulações sobre o futuro do livro e seu provável fim enquanto objeto de leitura, e então temos perspectivas ainda mais sombrias. Diante deste cenário, a Câmara Brasileira do Livro pensa em implantar uma política para a promoção do livro nacional, a fim de estimular o gosto de ler entre os jovens - e, conseqüentemente, o consumo de livros.

Números tristes ou interessantes à parte, acho que se faz necessário dissociarmos o hábito da leitura do hábito de ler livros. Leitura é algo muito mais abrangente do que ler livros; está mais para postura de vida do que para o ato de fazer varredura visual de letras sobre folhas de papel. Ler requer uma pré-disposição específica para a compreensão do mundo que nos cerca. É atitude complexa, que ultrapassa a mera apreensão do significado literal de palavras e está ligada ao desenvolvimento de uma postura ativa no mundo. Ler é educar-se.

 

Gostar de livros é experiência sensorial

A leitura é um ato do intelecto e, se bem desenvolvida, pode transformar-se em fruição estética e espiritual. Quem tem o hábito freqüente de ler não faz diferença quanto ao objeto de leitura. Tanto faz se é livro, bula de remédio, panfleto entregue pela janela do carro no semáforo, revista de variedades na sala de espera do consultório, apostila técnica, e-mail no palmtop ou site na internet.

Quem tem por hábito ler não se importa se chove ou faz sol, se está escuro ou claro, se está na biblioteca, no banheiro ou no metrô. Não se importa se o texto está em papel ou na tela, se o que lê é livro ou computador. Quem se interessa por ler lê tudo o que lhe cai nas mãos - e isto não é apenas chavão "demodé", mas fato facilmente observável. Quem gosta lê tudo e lê sempre, em qualquer circunstância, desde que sinta necessidade e/ou prazer para tanto.

Já o amor pelos livros é outra história. Há, sem dúvida, os aficcionados do texto de papel, que estremecem de emoção ao sentir o cheiro de livro novo, recém-saído da gráfica. Ou a emoção paradoxal de cheiro de livro velho, curtido em sebos de qualidade, esperando o folhear leve, típico do slow food. Roçar os dedos por folhas de papel de boa qualidade, ouvindo o estalar de páginas virgens de um livro ainda não lido, é um prazer estético e sensorial. Gostar de livros é experiência tátil, visual, auditiva, olfativa. Amar livros é uma experiência sinestésica quase sexual, de tão material.

Conheço pessoas que lêem vários livros técnicos e de cunho estritamente profissional, impressos no velho e bom papel, que facilmente engrossariam a estatística de leitores e, no entanto, não lêem mais nada além disso. Até se irritam ao ouvir falar em livros fora do expediente ou dos bancos escolares. Será que podemos considerar essas pessoas efetivamente "leitoras"? Será que elas gostam mesmo de ler, têm a leitura como modo de vida, no sentido mais amplo? Ou seriam apenas leitores funcionais (fazendo-se uma analogia com os analfabetos funcionais), que até lêem, mas não estão acostumados a ler, a não ser quando absolutamente necessário?

Também não podemos nos esquecer daqueles que adoram tanto os livros que quase chegam a enquadrá-los, colocando-os como objetos de puro adorno em estantes, colecionando-os a metro... São pessoas que se extasiam com os livros enquanto objetos estéticos, extáticos, materiais, independentemente de seu teor. Que não se interessam pelo seu conteúdo potencialmente dinâmico.

 

Ler é educar-se

Eu, sem dúvida, estou incluída no rol dos que amam os livros e o texto impresso. Sou uma colecionadora de papéis de mão cheia, e também adoro navegar sem pressa pelas estantes de livros, sejam elas de livrarias da moda ou estantes empoeiradas de sebos repletos de relíquias ou esquecimentos. Reverencio tanto as novas edições (ainda mais se são caprichadas) quanto os livros antigos, que armazenam ácaros de segredo e saudade.

Confirmando o clichê, leio tudo o que me cai na mão. Todas as paixões legíveis me divertem. Entretanto, para mim há claramente uma distinção entre o ler, enquanto "modus vivendi" e o gostar de livros, enquanto fixação amorosa ou hobby. Amar livros não é necessariamente amar a leitura; mas amar a leitura é, conseqüentemente, amar (também) os livros.

Falo por experiência própria: sou uma leitora compulsiva, às vezes obsessiva, e o que me interessa sempre é o texto - não importa como ele venha. O que eu quero é o conteúdo, a mensagem. O suporte, a forma como ele é formatado ou embalsamado, é apenas um detalhe, uma questão transitória.

Insisto como importante esta distinção entre o hábito da leitura e o consumo de livros pois vejo como absolutamente necessário adaptarmo-nos aos novos tempos e às novas tecnologias. Da mesma forma que nos acostumamos, ao longo da história, a ler sinais de fumaça, papiros, pergaminhos e códices feitos do couro de ovelhas jovens, iluminuras medievais e livros impressos pós-gutemberg, hoje devemos estar preparados para ler livros de bolso, edições de arte & luxo, histórias em quadrinhos, revistas, jornais, outdoors, neons, painéis eletrônicos-eletromídia, grafites, telas de máquinas de raios catódicos ou de cristal líquido, como TVs e palmtops.

Enquanto não dissociarmos o hábito da leitura (enquanto estilo e paradigma de vida) do hábito de ler livros de papel; enquanto continuarmos insistindo em considerar leitores só aqueles que lêem "x livros/ano", numa abordagem meramente formal e quantitativa, continuaremos a assistir ao definhamento das estatísticas que indicam quantos são os leitores existentes.

Enquanto não encararmos o fato de que hoje, parodiando Lobato, uma nação se faz de homens e leitura - não importa qual seja a fonte da leitura, não cumpriremos a missão cidadã de orientar as novas gerações de leitores, pois estaremos fechando os olhos para um futuro prescrito que já se faz presente.

 

[© Rosy Feros, 2001]

 

 

 

 

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"Os leitores que importam são os que não se prendem aos livros, os que não permanecem sempre
leitores, os que sabem deixar de ser discípulos, os que não querem continuar sendo crentes, os
que sabem deixar os livros e continuar sozinhos, os que seguem seu próprio pathos, seu próprio
caminho. Só eles possuem a suprema arte da leitura."

[Jorge Larrosa em "Nietzche & a Educação". Traduzido por Semíramis Giorni da Veiga. 2. ed.
1ª reimpressão. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.]

 

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