Senso crítico x opiniões intestinais

27/04/2019 20:06

Vivemos tempos complexos, em que o formato das mensagens importa muito mais que o seu conteúdo - chegando, algumas vezes, até mesmo a negá-lo.

Vivemos tempos em que mais vale quem diz a mensagem do que a mensagem propriamente dita. Isto, também conhecido como argumento de autoridade, antes era tido como desrespeito e força desmotivadora de um verdadeiro diálogo, equivalente ao execrável “você sabe com quem está falando?”.

Vivemos tempos em que mais se exige do estudante que ele “desenvolva o senso crítico” e tenha opiniões sobre o mundo que o cerca, e menos que ele tenha conhecimento. Não se exige que antes ele desenvolva a autocrítica, mirando primeiro o seu universo particular, para então compreender o mundo externo. Para que seja possível construir uma crítica social da vida baseada na razão sóbria, e não submetida apenas aos caprichos egocêntricos das emoções e dos instintos.

Na prática, o que fica valendo mais é o que se acha disto ou daquilo, que impressões subjetivas os fatos nos causam, mais até do que compreender e analisar objetivamente os fenômenos sociais.

O que temos construído socialmente a partir disto todos experimentamos nas redes sociais: miríades de vozes, muitas vezes desconectadas da realidade externa, alinhadas principalmente aos apelos de seus intestinos, gritando aos quatro ventos suas “opiniões “, sem ouvir praticamente nada do que o outro diz.

Basta haver um choque com opiniões contrárias ao que seu umbigo lhes diz para haver a manifestação escandalosa de seu “pensamento”: reagem, não de forma a contra-argumentar racionalmente, mas como se tivessem sido ameaçados fisicamente, como se sua sobrevivência estivesse por um fio.

Nesses embates, supostamente ideológicos, não são estabelecidos diálogos, não há comunicação de fato, apenas se atiram flechas a esmo, querendo atingir o outro que pensa diferente apenas porque pensa diferente, numa luta tribal em que o mais importante é demarcar territórios.

Que raciocínio crítico tão desenvolvido é esse, que sai dos canais mais primitivos do ser e usa a fala apenas como instrumento de defesa de uma corporeidade frágil, que se sente agredida à mínima contestação?

Se me sinto agredido ou ferido diante de manifestações contraditórias ao meu modo de pensar é porque estou dando mais valor ao pensamento do outro do que a mim mesmo. Se meu ser se fragiliza à mínima estocada de opiniões diferentes do que acredito, talvez é porque eu não tenha muita convicção do que acredito e preciso demonstrar ao outro (e a mim mesmo) que o que creio é real.

Para haver um diálogo entre seres diferentes, entretanto, é preciso conhecer e respeitar o outro - muito além dos possíveis “lugares de fala” ou de quaisquer argumentos de autoridade. Mas, como posso conhecer o outro, se não me conheço, não descobri por mim mesmo de onde vim, se só sei aquilo que me dizem ser o “certo”?

Se o lugar de fala é mais importante do que o que está efetivamente sendo dito, se o “pedigree” do interlocutor é mais importante do que o conteúdo de sua fala, então não se está realizando um diálogo real. Não se está respeitando as diversidades sociais. E, onde não há diálogo e respeito pelo outro que fala, não há comunicação humana.

Como posso engendrar opiniões sensatas e críveis, fincadas com os pés na terra concreta, se a mente não é capaz de raciocinar satisfatoriamente, se está mergulhada em abstrações e impressões desvinculadas da própria experiência?

Não posso gerar conhecimento próprio a partir da experiência alheia. Se penso a partir só do que o outro me fala, estou a mimetizar ações e a decorar roteiros escritos por outros agentes, que não eu.

Neste nosso contexto social atual, cabe muito bem o que disse o escritor português José Saramago:

“O problema não é que as pessoas tenham opiniões, isso é ótimo. O drama é que as pessoas tenham opiniões sem saber do que falam.”

[Rosy Feros, 27/04/2019]

 

 

 

 

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