Peitar ou respeitar?

29/04/2018 23:24

 

Observando tantos conflitos sociais, marcadamente envolvendo opiniões e posicionamentos políticos, tenho buscado compreender o porquê de tanta intolerância ao outro justamente numa época em que temos nos definido tanto pelas diferenças. 

Paralelo a isto, tenho percebido um grande desmantelamento cultural, em vários níveis. E isto não é privilégio do Brasil, como apostariam ou gostariam alguns, mas parece ser uma característica notória de nosso tempo, presente em vários e distintos lugares do globo. Permeando tudo, praticamente, há uma total falta de respeito por parte das pessoas. E quero dizer falta de respeito lato sensu, em todos os sentidos e de todas as formas possíveis. 

Não se vê mais a postura humilde de se ouvir antes de falar, de se considerar a fala do outro, de se eximir do direito de julgar o outro só pelo prazer de julgar. Nossa educação, do nível mais pessoal ao institucional, não prevê a reverência, a deferência, o receio, a obediência. Não se tem medo de desacatar, como se as regras fossem para ser sempre desobedecidas. Em suma: não se tem respeito algum por coisas, pessoas ou mesmo ideias.

Ando cansada de ver tantos julgando searas alheias, criticando ferozmente posturas e áreas às quais não pertencem, que nem lhe são familiares, das quais são totalmente ignorantes, não sabem nada, mas acham que sabem tudo e detêm a Verdade. 

Estou cansada de ver gente que se diz politizada usando de retórica pretensamente política, no intuito de defender seus ideais, e desferindo ataques ad hominem, deixando de discutir o conteúdo e argumentando contra a pessoa. Estou farta de ver gente que se julga lúcida e racional sendo instrumento de correntes de pensamento ultrapassadas, que a própria História já julgou, achando que estão defendendo a "boa nova" e trazendo luz aos "pobres e cegos de espírito ".

Estou farta de ver tantos que se dizem cristãos acusando os outros sem razão nem piedade, dando a esmo supostos tiros de misericórdia, sem dar ao outro o direito legítimo de defesa, o direito da palavra, o direito de pensar diferente. Não importa quem seja o outro, nem quão diferente ele é. 

Estou farta de ver tantos alegando compreensão pela diferença e sabedoria política quando, na verdade, se escondem atrás de máscaras pseudobondosas e pseudocristãs para exercerem o escárnio, a maledicência, a diminuição do outro, a prepotência e a arrogância. 

Estou cansada de ver gente que não tem noção da própria ignorância e se arroga defensora da Educação; gente que nem graduação universitária tem, mas condena erros de magistrados; gente que nunca trabalhou por conta própria, ou que não compreende noções básicas de economia doméstica, mas que defende políticas messiânicas que não querem saber de onde virá o dinheiro para pagar as contas. 

Quanta gente que não respeita os mais velhos - ou a possibilidade dos mais velhos saberem algo mais, nem que seja pelo simples fato de terem mais tempo de experiência de vida. Gente que não respeita livros, ciências, religiões, filosofias, gostos - e que mal têm ideia do que seja construir um gosto, cultivar o conhecimento, de como é difícil e moroso desenvolver qualquer consciência ou espírito crítico.

Criou-se um mar vermelho, em que só há dois lados e nenhuma outra opção - nem mesmo "NDA" (Nenhuma das Alternativas Anteriores). Quem não gosta de mortadela ou coxinha não tem direito ao Parlamento, não pode opinar sobre menus políticos. Quem não é adepto de A ou de B, não pode fazer parte do jogo porque é "analfabeto político" ou não estudou História.

Numa época em que tanto se fala de LGBTXYZ, a pior discriminação, a meu ver, é a da inteligência e da cultura - não importa o gênero, o número e o grau. Hoje, proíbe-se a possibilidade de existência de inteligências e sensibilidades fora da esquerda política. Não se pode ser feminista sem ser de esquerda, não se pode ser de classe média (afinal, o que é isto mesmo?) e ser liberal, não se pode ser negro e ser contra cotas em universidades, não se pode ser homossexual e ser cristão, não se pode ser empresário e defender projetos sociais. 

Considera-se politicamente incorreto criticar (ainda que com base em teorias musicais ou culturais) gêneros musicais como funk, sertanejo, pagode ou estilos equivalentes. Não se pode ser pobre de moedas e defender música clássica, sem ser rotulado de "traidor do proletariado" ou defensor de "elites anacrônicas e conservadoras". 

Desejar uma discussão aprofundada, pautada em princípios lógicos e usando-se uma linguagem sem xingamentos à reputação do outro, é visto como ato esnobe ou prepotente. Por generalização, execra-se a inteligência culta e louva-se o ignorante, o bobalhão, o rasteiro. Faz-se hoje uma verdadeira exaltação da ignorância e da pobreza de espírito - e, se isto vier regado com humor mordaz e maledicente, invejoso, ainda mais celebrado será. 

A cultura erudita jaz na sarjeta dos tempos, marcada como inimiga implacável de tudo o que é popular. De outro lado, tudo o que é popular deve ser aclamado e bem aceito, sem exceção ou crítica. Assim, tudo o que vem da elite ou dos ricos deve ser desconsiderado e rechaçado como ruim, coisa de "burguês" ou "conservador", coisa de "capitalista", necessariamente antipopular e "fascista". Como se, um dia, a cultura erudita não houvesse sido popular.

Na real: estou farta do desrespeito superlativo, histriônico, múltiplo, infantil, ignaro. Do desrespeito que não se enxerga e se acha o máximo, que se acha "in", "cult", "moderno", "maduro", "liberal", "progressista", "revolucionário".

Somos constrangidos a seguir um manual social de conduta politicamente correto, e infringir suas "leis" equivale a cometer "pecados capitais" capazes de nos tornar "excomungados" do convívio social. Quem estabeleceu esse manual? A que consciência devemos justificações? A quem interessa o politicamente correto, mais que o real respeito ao ser humano como um todo? Quem detém o poder da guilhotina? 

Será mesmo que nada do que existiu antes de nós presta? Toda a tradição - Arte, História e conhecimentos de nossos ancestrais - serve para nada? Somos meras tábulas rasas, folhas em branco livres de impressões pregressas, submissos à cruel tarefa de Sísifo de ter que inventar a roda outra vez, a cada nova geração?

Respeitar é respeitar-se, para então respeitar o outro. É considerar que o futuro só se faz a partir de um olhar minucioso e analítico do passado, respeitando-se todos aqueles que vieram antes de nós. Concordemos ou não.

Uma das piores formas de manipulação de "verdades" é quando a raposa se traveste de cordeiro, desdenhando das uvas que tanto gostaria de comer. Há que se ter muito cuidado com gente que não respeita os outros, mas se arroga detentor de inúmeras virtudes. 

Afinal de contas, respeitar não significa, necessariamente, aceitar e assumir para si. Mas saber conviver, apesar de todas as diferenças, fazendo jus àquela denominação que nossa espécie animal recebeu: "Homo sapiens".

 

[© Rosy Feros, 29/04/2018]

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